quinta-feira, 4 de julho de 2013

Perrengues, parte 01

Então vocês veem as fotos – os sorrisos, as festas, as paisagens de tirar o fôlego, templos, bichos, neve, praia, montanha, deserto, rios, florestas, gente local em seus trajes típicos, comidas... ufa! Parece uma perfeição sem fim. No entanto, a vida de mochileiro também tem seus percalços. Para cada foto maravilhosa e experiência incrível, pode ter certeza que há horas e mais horas de apertos em ônibus hiperlotados, noites em lugares, digamos, menos que confortáveis, dificuldades com a língua, lavagem de roupa no balde, pesquisas infinitas de preços de passagens aéreas, e tudo o mais que torna mochilar uma atividade ainda mais prazerosa por ser desafiadora. Já escrevi sobre a experiência em outro post. No entanto, além dos desconfortos habituais, vez por outra aparece um belo PERRENGUE. Saber lidar com os perrengues é essencial para sua vida de mochileiro – ou você lida bem com isso, ou essa vida não é pra você. E de tudo sai algo bom: estas experiências são sempre compartilhadas nas rodas de viajantes nos bares e praias, e sempre começam com “Sabe aquela vez em que...”.

Mochileiros e seu lado menos glamuroso: olheiras, cochilos de exaustão de cara no banco da frente, e muito mais.


Então, pra ninguém achar que tudo são rosas, SABE AQUELA VEZ EM QUE...



1)    ... eu passei 16 horas de conchinha com um senhor indiano?

Calcutá, Índia. Nosso grupo de 10 amigos, todos voluntários, decidiu passar o Natal em Gangtok e Darjeeling, duas estações de montanha no sopé dos Himalaias no extremo nordeste da Índia. Tomamos essa decisão meio em cima da hora, e descobrimos que todos os trens entre Calcutá e Siliguri (a cidade de onde saem os jipes para as outras duas) estavam lotados. Sim, o país hindu não comemora o Natal, mas a data coincide com os feriados de fim de ano deles, e todos correm para as montanhas. Ou seja, corremos, e conseguimos as últimas vagas em um ônibus.

Fiquei feliz quando soube que o meu lugar era um “sleeper”, um leito suspenso acima dos assentos. Ao entrar no ônibus, porém, começou a decepção:



Notem que eu não caibo nem esticado horizontalmente, nem sentado verticalmente. Eu ainda estava pensando “Potz, vai ser desconfortável passar 16h assim, mas dá pra segurar”, quando aconteceu. Um respeitável senhor indiano e sua família, mulher e dois filhos, entram no ônibus. A mulher e as crianças ocupam um sleeper, e o senhor sobe no meu e anuncia: “parece que vamos dividir esse aqui”. Demorou um pouco até eu sair do choque e perceber que sim, aquilo que não me cabia sozinho eram na verdade DOIS lugares no ônibus.

Em choque


Era isso ou desistir de toda a viagem. Foi isso. Aperta daqui, aperta dali, e a única posição (sério, a única), em que dava pra gente se amontoar naquele espaço era de conchinha. O indiano nem tomou conhecimento do desconforto – super normal pra eles, mas para fim uma noite do inferno. Afinal:

a)  A viagem de 16 horas durou 20;

b) Eu tentava manter distância, e ficava colado no vidro. Era inverno e estávamos subindo as montanhas, e eu ficava com o calor do indiano na barriga e o frio do vidro nas costas, sem cobertor.

c)  Tínhamos (foto abaixo) garrafas de água num suporte aos nossos pés. A estrada era tão miseravelmente acidentada, que o plástico de uma rachou com os solavancos. Quando percebi, estava com os pés e meias encharcados naquele frio de rachar;

d) Meu colega tinha CC e mau hálito, e era um jogo interessante tentar descobrir qual futum era qual;

e) Meu fone de ouvido resolveu quebrar no começo da viagem, então fiquei sem música também;

f) O ônibus, de acordo com os lindos hábitos de trânsito indianos, passava mais tempo buzinando do que não.

No fim, a gente aguenta tudo.




2)   ... eu coloquei até a alma pra fora na descida das montanhas do Nepal?

Pokhara, Nepal. Andar de ônibus no Nepal não é brincadeira de criança. Estradas péssimas com abismos gigantescos ao lado, ônibus pequenos (por causa das estradas estreitas), superlotados e com bagagens no corredor, música nepalesa (o encantamento cultural dura exatas 3 músicas) no último volume durante toda a viagem, solavancos épicos, motoristas maníacos. Um pouquinho de como é no vídeo abaixo:




Depois de 2 semanas a pão-de-ló em Pokhara, o pequeno paraíso perdido à beira do lago e ao pé da cordilheira dos Annapurnas, eu tinha esquecido da dura realidade. E, ao decidir pegar o ônibus de lá para a fronteira com a Índia, dez horas descendo a montanha num ritmo alucinante, esqueci de me preparar convenientemente.

Eu estava, à época, aproveitando a calmaria em Pokhara para me exercitar – corria todo dia no lago, nadava e levantava uns pesos, um ritmo bem forte. Cheguei no hotel cansado da correria, comi uma besteira, e fiquei displicentemente no computador até às 3h da manhã. Às 5h, catei minha mochila de 25kg, e, num surto de avareza, decidi andar os 3km até a estação de ônibus e economizar no táxi.

Ou seja, cheguei para a viagem com o corpo fadigado do dia anterior, sem ter dormido direito, com o esforço físico logo pela manhã e sem comer. Já estava tontinho nessa hora. Por causa do mal-estar, tomei só um copo de leite na estação pra não vomitar.

Como diria Chico Buarque... qual o quê. Imaginem-se neste estado, descendo uma montanha russa por dez horas. Comecei a passar super mal, e lutava com todas as forças para não vomitar. Assim que chegou na primeira parada na estrada, coloquei até o fígado pra fora. Ainda tinha mais 6h pela frente, e só consegui tomar água. Na segunda parada, foi-se a água e mais alguns órgãos. Cheguei perto da fronteira branco que nem um papel, e com a vista escurecendo.

O plano era cruzar a fronteira ainda naquele dia e pegar o trem para Varanasi, mas logo percebi que não ia rolar. Fui cambaleando com a mochila nas costas até o primeiro hotel pé-de-chinelo que achei, e nem negociei a diária. Entrei no quarto e caí na cama de tênis. Não sei se dormi ou desmaiei, sei que acordei 3h mais tarde, já escuro e faltando luz, e simplesmente não consegui me levantar, fiquei parado na cama, aterrorizado. Foi a única vez na minha viagem toda em que eu fiquei com medo de ter alguma coisa realmente séria e estar desamparado no meio do nada.

O hotel que me salvou - peguei a foto da internet porque na hora não tive condições...


Com um pouco mais de tempo, consegui ir lentamente até o restaurante e bebi quanta coca-cola consegui, para ter açúcar rápido alimentando a turbina. Comprei uns sanduíches e fui comendo a conta-gotas para não embrulhar o estômago. Na tarde do dia seguinte eu estava me sentindo bem o suficiente pra retomar a viagem, mas foi um belo susto.


Mais perrengues no próximo post!



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