sexta-feira, 5 de julho de 2013

Perrengues, parte 02

Para quem não está vendo em sequência, vejam antes o primeiro post da série Perrengues. Seguem mais alguns!

SABE AQUELA VEZ EM QUE...


3) ... nos deparamos com um pervertido caiçara indiano?

Palolem Beach, Goa, Índia. Um paraíso de belas praias, vacas e boa comida. Conversas preguiçosas como novos amigos sob o luar da madrugada na praia. Assim é a vida em Goa.


A praia é para todos. Mooo.      


O alto fluxo de turistas sazonais neste ex-enclave português no subcontinente indiano obrigou os locais a improvisarem. A maior parte da acomodação disponível em Palolem Beach se dá na forma de pequenos bangalôs de madeira. Por 500 rúpias você aluga um com open-bar de mosquitos e eletricidade intermitente. A beleza natural tem um preço, afinal. Minha querida companheira de viagem Mairê e eu dividimos um desse, e a vida era bela.


Nosso cafofo

Por dentro da intimidade das estrelas


Uma bela noite, como são todas por ali, voltamos para casa por volta das 2h da manhã de mais um sarau noturno à beira-mar. Mairê foi tomar um banho, e a certo momento começou a falar: “Que estranhos esses barulhos, acho que tem um ratinho aqui pelo teto”. Rato na Índia, ok, big news. Segue a vida. Quando chegou a vez do meu banho, ouvi os mesmos barulhos, mas eram muito fortes para serem de um rato, sugerindo um animal pesado. Talvez uma vaca pastando atrás do bangalô? Saí do banho, botei uma roupa, peguei minha lanterna e fui lá fora investigar.


Dei a volta pelo lado do bangalô


Olhei embaixo do bangalô, que é suspenso - nada. Não tinha mais barulho, mas a essa hora eu já estava encafifado: se fosse uma vaca, ela não teria saído dali tão rápido sem um barulho muito maior. Fui dando a volta pela lateral, lentamente. Silêncio e escuridão, exceto pela minha lanterna. Quando cheguei na parte de trás, apontei a lanterna para a parede externa do banheiro e vi... dois pés balançando um metro e meio acima do chão. Em choque, apontei a lanterna para cima e vi que os pés estavam ligados ao um jovem adulto indiano, sem camisa, que se segurava pelos braços na viga superior do bangalô, e cujos olhos arregalados de espanto brilhavam à luz da lanterna.


A criatura estava aí, pendendo em cima do cano.

Nessa hora, entram os instintos criados a ferro em fogo em São Paulo – não sabia quem era, se tinham mais pessoas com ele, se estavam armados, o que queriam. Corri pelo caminho por onde tinha vindo para pegar a Mairê e irmos para um lugar seguro. Quando o caiçara viu que eu corri, se largou no chão com um estrondo e correu loucamente para longe dali pelo meio de uma pilha de folhas, lixo e tábuas de madeira.
O barulho da confusão acordou dois indianos no bangalô ao lado, e então me ajudaram a vasculhar a área. 

O intruso estava se escondendo há um bom tempo nas vigas do teto do nosso bangalô, sem dúvida nenhuma para espionar pelas frestas do banheiro. Certamente ganhou a noite com o banho da Mairê, perdeu metade com o meu, e espero que o susto que dei nele tenha lhe dado pelo menos uma boa lição.




4)  ... peguei um trem à la James Bond na Índia?

Satna, Índia. Ah, os trens na Índia. Páginas e páginas de pequenos perrengues poderiam ser escritas sobre cada pequena viagem neles, que, no entanto, permanecem sendo mais eficaz, barato e autêntico meio de transporte do subcontinente. As viagens são lentas e longas, com paradas em todas as estações, podendo ser tão curtas quanto 5 minutos e tão longas quanto 2 horas, sem que ninguém saiba quanto vai ser na próxima.


Um vagão Sleeper, com "cabines" abertas de 8 leitos cada.


Os trens indianos com leitos (a imensa maioria) têm usualmente 5 classes: AC1, AC2, AC3, Sleeper e 2nd Class. As classes AC têm ar-condicionado e conforto progressivamente maior da AC3 até a AC1, confortos esses que vão de ter colcha, travesseiro e lençol no leito, a ter apenas duas pessoas por “cabine” e refeições inclusas. Cada classe custa umas 3 vezes mais que a imediatamente anterior. Nunca viajei acima da classe AC3, e, como bons mochileiros, eu e Mairê sempre viajávamos de Sleeper, que é como a maior parte dos indianos viajam longas distâncias. Vagões Sleeper são normalmente sujos, infinitamente quentes e sempre lotados. Maravilha.


Uma pessoa por leito? Reveja seus paradigmas.


Então, no longo e tortuoso caminho entre Satna (a estação mais próxima de Khajuraho) e Mumbai, o trem parou. Desci, como sempre fazia, para comprar água e mantimentos. Apontei o que precisava na barraquinha do ambulante. E ele começou a fazer gestos urgentes e a falar alto em híndi, apontado pra mim. Achei que ele estava me cobrando mais do que os produtos custavam. “NO, 30 rupees! Only 30 rupees!”, respondia eu. O vendedor pegou o dinheiro e me jogou as coisas, e parecia desesperado. Feliz por conquistar o preço justo, abri um sorriso e me virei para a plataforma. E vi... MEU TREM EM MOVIMENTO, E GANHANDO VELOCIDADE.

Desespero. Comecei a correr que nem um louco na plataforma. O trem já estava rápido. Fosse na CPTM em São Paulo, jamais tentaria pegá-lo. Mas TODA A MINHA VIDA estava naquele trem. Acordei o Usain Bolt em mim e disparei. Já no fim da plataforma, alcancei o último vagão, me alinhei à ultima porta (pelo menos os trens indianos são civilizados o suficiente para mantê-las sempre abertas), e me joguei. Nunca levei a expressão “um salto de fé” tão literalmente.

Consegui embarcar e, ainda com as pernas pra fora do trem, fui ajudado pelos indianos que estavam no trem, vários rindo muito da minha situação. Só aí que percebi: os últimos vagões de cada trem são os da 2nd Class, e estes não possuem passagem para os vagões das classes superiores. Teria, portanto, que esperar a próxima estação, onde eu poderia descer, andar pela plataforma até meu vagão, e embarcar novamente. Já não tinha mais celular àquela altura da viagem, então nem avisar a Mairê eu podia. Por tudo que ela sabia, o mais provável é que eu tivesse ficado na estação mesmo.

O que não tem remédio, remediado está. Achei um cantinho e me espremi entre os mil indianos alim que me olhavam como um ser de outro mundo – acho que nunca um gringo pegou um vagão de segunda classe.


Curtam o olhar de felicidade dos passageiros.


Só visitando a 2nd Class para saber o que é. Não há leitos, só bancos e grades suspensas para bagagens, mas há bagagens nos bancos e pessoas nas grades. E pessoas no chão. E pessoas no corredor. E pessoas sobre pessoas. E crianças sobre pessoas sobre pessoas. E pessoas dormindo no chão entre as portas dos banheiros, sendo que já dá pra sentir o cheiro de longe quando abre-se uma daquelas portas, imagina dali.


O vagão mais vazio da 2nd Class que já vi.

Após uma hora e meia, o trem parou de novo, e eu voltei pro meu vagão. Encontrei uma pequena comoção lá, com a Mairê em meio a uns 5 prestativos indianos, tentando se fazer entender. A coitada já estava pensando no que fazer, depois de razoavelmente assumir que eu não tinha pegado o trem: ela não tinha como falar comigo, e minha bagagem estava acorrentada e trancada por um cadeado cujo código ela não sabia, sem contar que ela não seria nunca capaz de carregar minha bagagem e a dela, e nem sabia como e quando nos encontraríamos em Mumbai (dificilmente eu conseguiria outro trem no mesmo dia).

Tudo acaba bem quando termina bem. E foi bom, uma vingança involuntária pelo perrengue que ela me fez passar, e que também vou contar a vocês.


Don't mess with Mairê. She bites.



Mais perrengues em breve!




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