Para quem
não está vendo em sequência, vejam antes o primeiro post da série Perrengues.
Seguem mais alguns!
SABE AQUELA
VEZ EM QUE...
3) ... nos deparamos com um pervertido
caiçara indiano?
Palolem Beach,
Goa, Índia. Um paraíso de belas praias, vacas e boa comida. Conversas preguiçosas
como novos amigos sob o luar da madrugada na praia. Assim é a vida em Goa.
A praia é para todos. Mooo. |
O alto
fluxo de turistas sazonais neste ex-enclave português no subcontinente indiano
obrigou os locais a improvisarem. A maior parte da acomodação disponível em
Palolem Beach se dá na forma de pequenos bangalôs de madeira. Por 500 rúpias você
aluga um com open-bar de mosquitos e eletricidade intermitente. A beleza
natural tem um preço, afinal. Minha querida companheira de viagem Mairê e eu
dividimos um desse, e a vida era bela.
Nosso cafofo |
Por dentro da intimidade das estrelas |
Uma bela
noite, como são todas por ali, voltamos para casa por volta das 2h da manhã de mais um
sarau noturno à beira-mar. Mairê foi tomar um banho, e a certo momento começou
a falar: “Que estranhos esses barulhos, acho que tem um ratinho aqui pelo teto”.
Rato na Índia, ok, big news. Segue a vida. Quando chegou a vez do meu banho,
ouvi os mesmos barulhos, mas eram muito fortes para serem de um rato, sugerindo
um animal pesado. Talvez uma vaca pastando atrás do bangalô? Saí do banho,
botei uma roupa, peguei minha lanterna e fui lá fora investigar.
Dei a volta pelo lado do bangalô |
Olhei
embaixo do bangalô, que é suspenso - nada. Não tinha mais barulho, mas a essa hora eu já estava
encafifado: se fosse uma vaca, ela não teria saído dali tão rápido sem um
barulho muito maior. Fui dando a volta pela lateral, lentamente. Silêncio e
escuridão, exceto pela minha lanterna. Quando cheguei na parte de trás, apontei
a lanterna para a parede externa do banheiro e vi... dois pés balançando um
metro e meio acima do chão. Em choque, apontei a lanterna para cima e vi que os
pés estavam ligados ao um jovem adulto indiano, sem camisa, que se segurava
pelos braços na viga superior do bangalô, e cujos olhos arregalados de espanto brilhavam
à luz da lanterna.
A criatura estava aí, pendendo em cima do cano. |
Nessa hora,
entram os instintos criados a ferro em fogo em São Paulo – não sabia quem era,
se tinham mais pessoas com ele, se estavam armados, o que queriam. Corri pelo
caminho por onde tinha vindo para pegar a Mairê e irmos para um lugar seguro.
Quando o caiçara viu que eu corri, se largou no chão com um estrondo e correu
loucamente para longe dali pelo meio de uma pilha de folhas, lixo e tábuas de
madeira.
O barulho
da confusão acordou dois indianos no bangalô ao lado, e então me ajudaram a
vasculhar a área.
O intruso estava se escondendo há um bom tempo nas vigas do
teto do nosso bangalô, sem dúvida nenhuma para espionar pelas frestas do
banheiro. Certamente ganhou a noite com o banho da Mairê, perdeu metade com o
meu, e espero que o susto que dei nele tenha lhe dado pelo menos uma boa lição.
4) ... peguei um trem à la James Bond
na Índia?
Satna,
Índia. Ah, os trens na Índia. Páginas e páginas de pequenos perrengues poderiam
ser escritas sobre cada pequena viagem neles, que, no entanto, permanecem sendo
mais eficaz, barato e autêntico meio de transporte do subcontinente. As viagens
são lentas e longas, com paradas em todas as estações, podendo ser tão curtas
quanto 5 minutos e tão longas quanto 2 horas, sem que ninguém saiba quanto vai
ser na próxima.
Um vagão Sleeper, com "cabines" abertas de 8 leitos cada. |
Os trens
indianos com leitos (a imensa maioria) têm usualmente 5 classes: AC1, AC2, AC3,
Sleeper e 2nd Class. As classes AC têm ar-condicionado e conforto
progressivamente maior da AC3 até a AC1, confortos esses que vão de ter colcha,
travesseiro e lençol no leito, a ter apenas duas pessoas por “cabine” e
refeições inclusas. Cada classe custa umas 3 vezes mais que a imediatamente
anterior. Nunca viajei acima da classe AC3, e, como bons mochileiros, eu e
Mairê sempre viajávamos de Sleeper, que é como a maior parte dos indianos
viajam longas distâncias. Vagões Sleeper são normalmente sujos, infinitamente
quentes e sempre lotados. Maravilha.
Uma pessoa por leito? Reveja seus paradigmas. |
Então, no
longo e tortuoso caminho entre Satna (a estação mais próxima de Khajuraho) e
Mumbai, o trem parou. Desci, como sempre fazia, para comprar água e
mantimentos. Apontei o que precisava na barraquinha do ambulante. E ele começou
a fazer gestos urgentes e a falar alto em híndi, apontado pra mim. Achei que
ele estava me cobrando mais do que os produtos custavam. “NO, 30 rupees! Only
30 rupees!”, respondia eu. O vendedor pegou o dinheiro e me jogou as coisas, e
parecia desesperado. Feliz por conquistar o preço justo, abri um sorriso e me
virei para a plataforma. E vi... MEU TREM EM MOVIMENTO, E GANHANDO VELOCIDADE.
Desespero.
Comecei a correr que nem um louco na plataforma. O trem já estava rápido. Fosse
na CPTM em São Paulo, jamais tentaria pegá-lo. Mas TODA A MINHA VIDA estava
naquele trem. Acordei o Usain Bolt em mim e disparei. Já no fim da plataforma,
alcancei o último vagão, me alinhei à ultima porta (pelo menos os trens
indianos são civilizados o suficiente para mantê-las sempre abertas), e me
joguei. Nunca levei a expressão “um salto de fé” tão literalmente.
Consegui
embarcar e, ainda com as pernas pra fora do trem, fui ajudado pelos indianos
que estavam no trem, vários rindo muito da minha situação. Só aí que percebi: os
últimos vagões de cada trem são os da 2nd Class, e estes não possuem passagem
para os vagões das classes superiores. Teria, portanto, que esperar a próxima
estação, onde eu poderia descer, andar pela plataforma até meu vagão, e
embarcar novamente. Já não tinha mais celular àquela altura da viagem, então
nem avisar a Mairê eu podia. Por tudo que ela sabia, o mais provável é que eu
tivesse ficado na estação mesmo.
O que não
tem remédio, remediado está. Achei um cantinho e me espremi entre os mil
indianos alim que me olhavam como um ser de outro mundo – acho que nunca um
gringo pegou um vagão de segunda classe.
Curtam o olhar de felicidade dos passageiros. |
Só
visitando a 2nd Class para saber o que é. Não há leitos, só bancos e grades
suspensas para bagagens, mas há bagagens nos bancos e pessoas nas grades. E
pessoas no chão. E pessoas no corredor. E pessoas sobre pessoas. E crianças
sobre pessoas sobre pessoas. E pessoas dormindo no chão entre as portas dos
banheiros, sendo que já dá pra sentir o cheiro de longe quando abre-se uma
daquelas portas, imagina dali.
O vagão mais vazio da 2nd Class que já vi. |
Após uma
hora e meia, o trem parou de novo, e eu voltei pro meu vagão. Encontrei uma
pequena comoção lá, com a Mairê em meio a uns 5 prestativos indianos, tentando
se fazer entender. A coitada já estava pensando no que fazer, depois de
razoavelmente assumir que eu não tinha pegado o trem: ela não tinha como falar
comigo, e minha bagagem estava acorrentada e trancada por um cadeado cujo
código ela não sabia, sem contar que ela não seria nunca capaz de carregar
minha bagagem e a dela, e nem sabia como e quando nos encontraríamos em Mumbai
(dificilmente eu conseguiria outro trem no mesmo dia).
Tudo acaba
bem quando termina bem. E foi bom, uma vingança involuntária pelo perrengue que
ela me fez passar, e que também vou contar a vocês.
Don't mess with Mairê. She bites. |
Mais
perrengues em breve!
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